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Flauta doce barroca vs. germânica: dois dedos de prosa

Ao ir a uma loja comprar sua primeira flauta doce, ou mesmo buscar informações sobre a flauta que lhe foi doada/emprestada, o principiante de imediato depara-se com a seguinte questão: vai usar o sistema de dedilhado barroco ou germânico?

O vendedor da loja provavelmente vai dizer que a flauta germânica é mais simples “pra começar” (isso se ele mencionar que há outra opção de dedilhado…). O argumento baseia-se na digitação da nota Fá4 na flauta doce soprano em Dó (ou Sib3 na Contralto em Fá) que, como se pode ver abaixo, na flauta germânica é realizada sem a necessidade de forquilha (quando se tem um furo aberto entre dois fechados em uma mesma mão).

Quem pesquisar um pouco mais vai descobrir que este modelo de flauta é uma invenção do século XX; mais precisamente, que o sistema de dedilhado germânico surgiu na Alemanha (obviamente!) a partir de alterações nos tamanhos dos furos 4 e 5 de um modelo original do século XVIII.

Junto com a simplificação do dedilhado do quarto grau, essas alterações causaram complicações no dedilhado de outras notas e desequilíbrio de afinação, sobretudo na segunda oitava do instrumento. Ainda assim, muita gente opta pelo dedilhado germânico porque entende que passará apenas por uma iniciação na flauta doce, e que, portanto, não terá que lidar com os problemas deste sistema de digitação. Será?

Neste artigo, pretendo discutir alguns mitos sobre ambos os dedilhados, e apresentar novos argumentos em favor do uso da flauta doce barroca. Não se trata aqui de querer repreender quem é adepto da flauta germânica, e sim de trazer mais informações para entender por que este modelo ainda é fabricado em larga escala e encontra tanto público; finalmente, para repensar seu uso, de verdade, tanto em ambientes informais quanto aqueles de ensino do instrumento.

Mito n.º 1: a flauta doce com digitação barroca é uma cópia autêntica do modelo que se usava naquele período

 

Não é bem assim. Vamos lembrar que a flauta doce ficou um bom tempo sem ser usada profissionalmente. Embora tenha existido continuamente no curso da história desde seu surgimento, nosso instrumento ficou de fora da produção musical pública entre meados do século XVIII e o final do século seguinte[1]. Quando músicos, pesquisadores e luthiers começaram a se interessar pela flauta doce e pela sonoridade da música produzida no passado, em finais do século XIX, recorreram a diferentes tipos de flautas, disponíveis em museus e coleções particulares, e passaram a fazer cópias. O mais bem sucedido nesta empreitada foi o músico e luthier francês de origem suíça Arnold Dolmetsch (1858-1940).

Arnold Dolmetch

Tendo estudado no Conservatório de Bruxelas, onde conheceu as cópias de flautas doces desenvolvidas por Victor-Charles Mahillon[2], e já estabelecido na Inglaterra, Dolmetsch valeu-se de duas fontes, pelo menos, para desenvolver seu próprio instrumento, em 1919: uma flauta doce contralto original Bressan[3], que ele havia adquirido em 1905 e foi perdida por seu filho em uma viagem de trem (depois ele a recuperou em uma casa de leilões, ufa!); e manuais do século XVIII sobre flauta doce, sobretudo ingleses, tais como o anônimo The Complete Instructor for the Flute, publicado em Londres em 1700. De sua luteria, após várias tentativas e ajustes, surgiu uma espécie de modelo híbrido, uma flauta doce contralto cujo dedilhado tem afinidades com a maioria das tabelas conhecidas do século XVIII. Para dar um exemplo pertinente ao nosso assunto, disponível no ótimo artigo do flautista e compositor norte-americano Daniel Wolf[4], a digitação em forquilha 0-1-2-3-4-6-7 para o Sib3 está descrita em uma única fonte histórica, o manual inglês acima mencionado (a grande maioria usa 0-1-2-3-4-6 para esta nota); já Ø-1-2-3-4-6[5] para o Sib4 é encontrado em boa parte dos tratados barrocos.

A flauta de Dolmetsch alcançou popularidade quando cópias passaram a ser produzidas por fábricas europeias, a partir da década de 1920. O legado de Arnold foi mantido e ampliado pelas iniciativas de seu filho, Carl (1911-1997), e do flautista, pedagogo e musicólogo Edgar Hunt (1909-2006), o grande responsável pela disseminação da flauta doce na educação musical das escolas inglesas. Carl Dolmetsch foi o responsável por fazer os últimos acertos do dedilhado, por ter ajustado a flauta ao temperamento igual e por fazer modificações no canal de ar, buscando uma sonoridade mais cheia e condizente com a de sua época. Hunt sempre defendeu o uso da flauta desenvolvida por Dolmetsch em seu país – as escolas inglesas nunca adotaram o dedilhado germânico, e este é um dos motivos pelos quais o sistema de digitação barroco também é chamado de ‘inglês’.

Na segunda metade do século passado, outros construtores se notabilizaram por desenvolver flautas doces que seriam modelos para os demais luthiers. Friedrich von Huene (1929-2016), nascido na Alemanha e radicado nos Estados Unidos, foi o responsável pelo design do modelo Rottenburgh, da fábrica alemã Moeck, bem como pelas flautas de resina da marca japonesa Zen-On; o australiano Frederick (Fred) Morgan (1940-1999), considerado um dos melhores construtores de flauta doce já existentes, desenvolveu a chamada “flauta Ganassi”, que se tornou referência de modelo renascentista para outros construtores. No entanto, foi a flauta de Arnold e Carl Dolmetsch que serviu de padrão de dedilhado para todas as outras que vieram depois. Por ter similaridade com as tabelas de dedilhados históricos, este modelo se popularizou como ‘barroco’. Isto quer dizer que a flauta barroca que usamos hoje não deixa de ser uma releitura das flautas barrocas do passado; porém, ao contrário daquelas com dedilhado germânico, ela preserva muitas das características do antigo instrumento. O mais adequado seria chamar este modelo de “Dolmetsch” ou “moderno”, como propõem alguns autores. Mas isto implicaria em grandes mudanças, não só para as empresas que fabricam instrumentos em larga escala, como para as editoras que adotam a nomenclatura atual em métodos e publicações diversas.

Sabemos hoje que há várias tabelas de dedilhados originais em tratados dos séculos XVI, XVII e XVIII, bem como digitações diversas provindas de instrumentos preservados em museus e coleções particulares[6]. Assim, não existe um dedilhado único original do Barroco, ou do Renascimento. Os construtores acabam fazendo pequenas adaptações para que os flautistas não tenham que alterar o dedilhado a cada instrumento que adquirem. Atualmente, muitos flautistas doces profissionais estão usando cópias exatas de modelos históricos específicos para terem instrumentos ainda mais fiéis à sonoridade e ao mecanismo técnico utilizado no repertório do passado. Esta é uma atitude louvável e que ainda deve nos trazer novos debates e conclusões. Mas é bom ter em mente que mesmo a cópia mais fiel nunca garantirá uma sonoridade 100% autêntica, e que o melhor instrumento será sempre aquele mais coerente com a concepção de performance que queremos.

Mito n.º 2: o dedilhado germânico foi desenvolvido para a musicalização infantil

Na verdade, a flauta doce com este dedilhado surgiu a partir de um equívoco de seu criador, o alemão Peter Harlan (1898-1966). Vamos contar essa história com mais detalhes.

Harlan, um ativo construtor de instrumentos de cordas, teve acesso a uma flauta doce contralto original Denner[7], pertencente à Universidade de Berlim, e decidiu fazer uma cópia. Ele percebeu a necessidade da forquilha na quarta nota da escala e achou que era uma falha de construção. Assim, modificou em sua cópia o tamanho dos furos 4 e 5 para que esta nota pudesse ser feita num dedilhado mais simples, semelhante ao usado na flauta transversal moderna.

O próprio Harlan admitiu o erro, anos depois. Em 2006, a revista alemã Windkanal publicou uma série de artigos, assinados pelo flautista, pesquisador e construtor esloveno Nik Tarasov, baseados em uma entrevista que Peter Harlan concedeu a Fritz Jöde[8] pouco após a 2a Guerra Mundial[9]. A entrevista, registrada em fita de rolo, tinha sido recentemente descoberta nos arquivos do movimento Juventude Musical Alemã (Deutschen Jugendmusikbewegung) em Wolfenbüttel, Alemanha. Harlan não é muito preciso em suas declarações, mas ainda assim elas nos parecem surpreendentes[10]. Selecionei aqui alguns trechos que considero fundamentais para se compreender o contexto em que surgiu a flauta doce germânica[11]:

Agora tenho confidências muito embaraçosas! A primeira flauta que construí, em 1921, foi uma cópia de uma flauta do construtor Denner, que eu consegui por intermédio de Curt Sachs na Universidade de Berlim – o mais delicioso dos instrumentos – e copiei. Eu ainda tenho a cópia em casa, e ela é simplesmente maravilhosa. Aquilo em que eu mexi e aperfeiçoei, e acabei fazendo uma das coisas mais malucas, é o que hoje chamamos de dedilhado germânico![12]

(…) O fato natural, de que a quarta é forquilhada, é devido aos tetracordes (tom-tom-semitom, tom-tom-semitom), o semitom da oitava sempre existiu (vocês sabem, aquele com o polegar). Eu não me dei conta imediatamente de que, para ter um instrumento orgânico, precisávamos fazer o outro tetracorde também com forquilha, pelo quê peço desculpas.[13]

 

(…) O fato do dedilhado germânico ter surgido porque eu cometi um tropeço, por conta de falta de conhecimento, continua sendo uma tragédia. (…) Mas isso deve ser sintomático para tudo: você se propõe a fazer algo que é maior que todos nós – [veja o caso desta] flauta Denner, a flauta doce já tinha uma tradição de sublime maturidade. E então eu fui reproduzir o sublime e de repente me dei conta: “ó não, eu não melhorei isso”.[14]

Quando percebeu que havia cometido um equívoco, já era tarde: a fábrica e editora alemã Bärenreiter foi a primeira dentre várias a enxergar no novo instrumento uma oportunidade de expandir suas vendas, tanto pela simplificação do dedilhado do Fá quanto pela adequação da flauta à demanda do crescente movimento Juventude Musical Alemã. No site da editora há a informação de que o contato entre Harlan e a Bärenreiter foi realizado provavelmente pelo intermédio do flautista e professor Willibald Gurlitt, e que em meados da década de 1920 Harlan desenvolveu para ela um set de flautas doces de diferentes tamanhos, vendidas em seu ateliê por um preço módico[15]. Logo outras fábricas começaram a produzir em larga escala e assim se estabeleceu o modelo germânico, assim chamado para se diferenciar do sistema de dedilhado inglês. Vale lembrar que, nessa época, os instrumentos eram construídos somente em madeira, e o maquinário para construção de flautas ainda não havia se desenvolvido, tudo era feito manualmente.

Harlan era entusiasta do movimento chamado Juventude Alemã, que pregava o retorno à vida simples, com a valorização da natureza, do ofício artesanal e da vida em comunidade. Ao pretender “aperfeiçoar” a flauta histórica, Peter Harlan não tinha ideia de que seu modelo iria se tornar um padrão utilizado na educação musical – queria apenas um instrumento que pudesse ser mais simples, rapidamente assimilado, condizente com os ideais do movimento.

A mudança do tamanho dos furos não passou ilesa: o modelo germânico apresenta instabilidade de afinação na segunda oitava, dificuldade de digitação de algumas notas alteradas, como o Fá# grave e agudo (na flauta soprano), e baixa qualidade sonora[16]. Por conta destes fatores, o sistema germânico pressupõe o uso da flauta doce apenas em sua escala diatônica na primeira oitava, restringindo muito seus recursos e sua tessitura. Definitivamente, não favorece o pleno uso do instrumento.

Por fim, antes de passar para o próximo mito, deixo uma pergunta que sempre me vem à cabeça: se a flauta doce germânica é mesmo uma solução eficaz para o problema da forquilha, será que os construtores do passado nunca pensaram nela? Afinal, não é necessária nenhuma tecnologia nova ou especial para produzi-la, basta alterar os tamanhos dos furos. Em três séculos de história da flauta doce, será que ninguém tentou isso antes? Não seria um tanto pretensioso de nossa parte achar que só no século XX alguém tenha se incomodado com um dedilhado pouco intuitivo para o quarto grau da escala, e buscado uma solução?

Mito n.º 3: a flauta germânica é mais barata

Junto com esta crença, vem outra: “A flauta germânica é de resina, a barroca é de madeira”. Ambas informações são imprecisas.

Ocorre que o público da flauta germânica é formado por amadores e iniciantes no instrumento. Os profissionais e os estudantes adiantados não consideram este modelo adequado, pelos motivos acima expostos. Assim, as grande fábricas disponibilizam o sistema germânico apenas em suas flautas “de entrada”, ou seja, aquelas mais simples e mais econômicas – lembrando que estes modelos também são disponibilizados no sistema barroco! Quando se parte para os modelos mais elaborados, portanto mais caros, invariavelmente as fábricas adotam o sistema barroco, ou mesmo dedilhados específicos.

Vamos tomar como exemplo duas grandes marcas. A japonesa Yamaha, campeã absoluta de vendas do instrumento, oferece a opção germânica para as flautas de resina sopranino, soprano e contralto de suas séries 20 e 30 (aquelas de uma única cor)[17]; para a série 300, que são aquelas de duas cores, ou que simulam madeira, somente a flauta soprano é oferecida neste sistema. Este é o caso também das “flautas ecológicas” recentemente lançadas pela empresa, feitas de resina à base de plantas, que constituem a série 400. Todas as flautas doces de madeira da Yamaha apresentam dedilhado barroco. Já a fábrica alemã Mollenhauer apresenta uma gama bem variada de instrumentos[18]. As séries que apresentam a opção pela digitação germânica, e somente para a flauta doce soprano, são: “Swing”, o modelo mais simples da marca, feito inteiramente de resina (com a ressalva de apresentar os furos 6 e 7 simples, os furos duplos só estão disponíveis no sistema barroco); “Prima”, que tem cabeça em resina e corpo em madeira; “Student”, sua opção mais acessível em madeira, disponível no sistema germânico somente com furos simples; e “Canta”, uma série pensada para grupos de flautas doces, que oferece os modelos soprano, contralto e tenor de madeira no dedilhado alemão. Todos os outros modelos da Mollenhauer estão disponíveis apenas no dedilhado barroco ou em dedilhados específicos. Com relação às flautas construídas por luthiers profissionais, a flauta germânica simplesmente não é oferecida. 

Assim, se o estudante optar por uma flauta doce germânica, vai encontrar um leque de opções mais restrito no mercado, tanto em termos de preços quanto de materiais, sendo todas as flautas produzidas apenas por fábricas; se optar por uma flauta doce barroca, o céu é o limite: vai encontrar variações de preços que chegam a mais de 10.000%, materiais diversos, modelos diversos, tanto de fábricas quanto de luthiers. Isso levando-se em conta apenas as fábricas sérias, com alto controle de qualidade; há uma infinidade de pseudo-flautas no mercado que não podem ser chamadas nem de brinquedos pois, além da péssima qualidade musical, apresentam rebarbas, bordas cortantes nos furos, tinta tóxica e mais outros fatores danosos à saúde e à segurança das crianças.

Mito n.º 4: o dedilhado germânico é mais parecido com o de outros instrumentos de sopro modernos, facilitando uma futura migração

Isto é parcialmente verdade. Falando de uma maneira descomplicada, há um princípio lógico na digitação dos instrumentos de sopro da família das madeiras: para realizar a escala diatônica ascendente principal do instrumento, deve-se partir do dedilhado todo fechado e ir tirando um dedo para cada nota. Nesse sentido, a digitação germânica de fato segue esse princípio, pelo menos até o sétimo grau (nota Si4 na soprano), assim como outros instrumentos de sopro modernos, como a flauta e a clarineta. O sistema barroco de flauta doce quebra a lógica ao demandar a forquilha no quarto grau. Portanto, se considerarmos apenas a escala diatônica da primeira oitava, o dedilhado germânico é sim mais parecido com os dos sopros modernos, o que facilitaria uma suposta migração.

Entretanto, ao analisarmos as tabelas completas[19], veremos que os sistemas de chaveamento dos instrumentos modernos geram digitações bem distintas, tanto da flauta doce germânica quanto da barroca. Há diversas chaves sobressalentes “no meio do caminho” para realizar notas alteradas e facilitar mudanças de registro. Isso sem contar as tonalidades e a natureza transpositora destes instrumentos, em geral distintas das flautas doces soprano e contralto. Assim, não nos parece válido o argumento de que a familiaridade com a digitação da flauta doce germânica facilita a migração para outros instrumentos, pois as digitações terão que ser revistas como um todo. Dizendo de outra forma, um estudante habituado com a digitação da flauta doce barroca vai ter praticamente o mesmo trabalho para aprender um instrumento de sopro moderno que aquele habituado com a flauta doce germânica.

Aqui cabem ainda duas observações: a flauta doce pode ser sim um instrumento de iniciação, servindo de trampolim para outros instrumentos de sopro, mas ela não precisa assumir este papel. É perfeitamente possível que a flauta doce seja o instrumento principal de um intérprete por toda uma vida profissional (como é o meu caso, aliás!). Há repertório vasto e diverso, dificuldades técnicas desafiantes, técnicas estendidas e tudo o mais que qualquer outro instrumento musical pode oferecer. Assim, deixe que o estudante decida se quer mudar de instrumento ou não, sem pressão!

A outra observação tem a ver com essa última questão: no período barroco, a figura de um instrumentista profissional especializado exclusivamente em flauta doce é bem rara. Em geral eles tocavam também oboé, nas orquestras barrocas, ou charamelas e outros instrumentos de sopro, nos grupos renascentistas. O interessante é que a digitação destes outros instrumentos é de fato muito similar à digitação da flauta doce barroca. Praticamente todos eles usavam forquilhas, pois até meados do século XVIII os sistemas de chaveamento ainda não haviam se desenvolvido para os que conhecemos hoje. Portanto, se houve um tempo em que o sistema de digitação de flauta doce de fato facilitava a migração para outros sopros, este tempo foi o período barroco. É por isso que a grande maioria dos oboístas barrocos da atualidade também tocam flauta doce, mas nem todo oboísta “moderno” é flautista!

Mito n.º 5:  a rápida introdução da nota Fá permite realizar um paralelo com o ensino da escala de Dó Maior e com o canto

É comum o argumento de que a flauta doce soprano acompanha o processo de iniciação musical infantil por se poder fazer um paralelo entre seu aprendizado e o da escala de Dó Maior. O uso da flauta germânica estaria justificado por possibilitar a introdução rápida da nota Fá4, logo facilitando o ensino de toda a escala. Entretanto, a grande maioria dos métodos de flauta doce começam pelas notas da mão esquerda, ou seja, Sol4-Lá4-Si4 (não necessariamente nesta ordem); assim, boa parte do repertório inicial proposto nos métodos é em Sol Maior, ou ainda na escala pentatônica, sem a inclusão da nota Fá.

O repertório em Sol Maior pode gerar a necessidade de uso do Fá#4, um dedilhado bem mais difícil de fazer na flauta germânica. Se o professor quiser ensinar músicas dentro da escala de Dó Maior, e assim sincronizar o aprendizado da flauta doce com o das notas musicais, vai ter que ensinar rapidamente não apenas a nota Fá4, como também as outras notas graves da flauta (Dó4, Ré4, Mi4), que são mais difíceis para um iniciante porque demandam um bom controle de ar e articulação, além de mãos maiorzinhas (mais difícil para crianças pequenas). Assim, não me parece nada vantajoso o uso de um instrumento cheio de problemas de afinação que facilita apenas o dedilhado do Fá4, uma nota que pode perfeitamente ser introduzida quando a criança já tiver familiaridade com sua flauta.

Outro argumento questionável é o paralelo que se faz entre o ensino da flauta doce e do canto. A voz infantil não é assim tão aguda quanto uma flauta soprano[20], e as canções que melhor se adequam à tessitura vocal são em tonalidades com acidentes, como Mi Maior, difíceis de tocar na flauta doce, sobretudo na germânica. É por isso que alguns métodos de flauta doce que utilizam playbacks fazem uso de tonalidades distintas para o acompanhamento da flauta e do canto, com modulações harmônicas entre as partes. Penso então que a criança pode ter uma iniciação musical teórica com a escala de Dó Maior, mas não precisa cantar e tocar flauta doce nesta tonalidade, e sim naquelas que tiverem tessituras mais adequadas.

Concluindo 

Pensando bem, os dedilhados barroco e germânico já podem ser considerados  dedilhados históricos. Desde que foram criados, há quase 100 anos, a luteria de flauta doce se desenvolveu bastante. Hoje, para atender à demanda de flautistas profissionais, é possível identificar duas tendências na construção de instrumentos: por um lado, vários luthiers estão se dedicando à manufatura de cópias de modelos específicos do passado, e assim oferecer aos que se dedicam à performance da música antiga opções de flautas doces mais adequadas ao repertório; por outro, fábricas e construtores estão buscando novas soluções para velhos “problemas”, como a limitação de dinâmica e o baixo volume sonoro da flauta doce. De ambas tendências surgem a cada momento novas propostas de instrumentos e dedilhados. Mas para o enorme público de estudantes, amadores e professores, as flautas doces tradicionais, com os sistemas de dedilhado barroco e germânico, ainda reinam soberanas.

Eve O’Kelly, em seu excelente livro The recorder today (A flauta doce hoje)[21], afirma em dado momento que “o dedilhado inglês [barroco] é um compromisso tanto quanto o dedilhado alemão[22]“. Ela quer dizer que ambos os modelos precisaram sacrificar características de flautas originais para resolver problemas diversos. Porém, segundo a autora, o dedilhado barroco “não foi tão infeliz nas consequências[23]“.  

De fato, a flauta barroca acabou trazendo novos parâmetros de som e dedilhado que se estabeleceram como o padrão de flauta doce dos tempos modernos. A flauta germânica, por sua vez, sempre esteve atrelada a problemas: falta de equilíbrio de afinação, sobretudo na segunda oitava, digitações mais complexas para determinadas notas alteradas, qualidade baixa de som, consequência da mudança no formato dos furos. Os argumentos de que ela é mais barata, ou mais adequada aos principiantes, ou ainda mais parecida com o dedilhado de outros instrumentos de sopro modernos são, como demonstramos, inconsistentes.

Acontece que estes argumentos ainda estão muito enraizados na comunidade musical. A crença de que a flauta germânica é uma melhor opção para o iniciante é algo cultural. E enquanto houver demanda para este instrumento, as fábricas continuarão a produzi-lo.

Cabe a nós todos, amantes da flauta doce, mudarmos esta cultura. É preciso ter em mente que, ao disseminar o uso da flauta germânica, estará se perpetuando a crença de que a flauta doce é um instrumento desafinado, de baixa qualidade sonora, e que só serve a estudantes iniciantes. A opção pela flauta barroca não é apenas uma escolha de dedilhado; é uma escolha de quem considera a flauta doce um instrumento íntegro, expressivo e perfeitamente apto à performance musical de alto nível. De que lado você vai ficar?

Notas

[1] Na minha tese de doutorado você encontra um relato bem detalhado dos motivos que levaram a flauta doce ao declínio neste período. Ela está disponível no link: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27157/tde-31102017-151628/pt-br.php>, pp.109-115.

[2] Victor-Charles Mahillon (1841-1924) foi músico, musicólogo, escritor e construtor de instrumentos belga, curador do museu de instrumentos do Conservatório de Bruxelas de 1878 até sua morte em 1924. Responsável por tornar o museu um dos mais importantes da Europa, desenvolveu, em colaboração com Brian Greene, um sistema de catalogação de instrumentos musicais que se tornou referência em organologia, servindo de base para o de Erich von Hornbostel e Curt Sachs.

[3] Pierre Jaillard (c.1650-1731), também conhecido como ‘Le Bressan’, foi um importante construtor francês de instrumentos de sopro. Mudou-se para a Inglaterra em 1688 e acompanhou o rei Guilherme III para a Holanda como um de seus oboístas. Os instrumentos de sua luteria que estão preservados em museus são referência para vários construtores de flauta doce da atualidade.

[4] O artigo de Wolf sobre dedilhados é bastante esclarecedor e muito bem fundamentado. Está disponível em: <http://www.dolmetsch.com/fingerings.htm> (em inglês).

[5] O zero cortado (Ø) indica furo parcialmente aberto.

[6] Várias estão disponíveis na internet. Visite o site do construtor francês Philippe Bolton: <http://www.flute-a-bec.com/tablhistogb.html> e a página de dedilhados interativos do flautista alemão Winfried Bauer: <http://www.recorder-fingerings.com/br/index.php>.

[7] Johann Christoph Denner (1655-1707) foi um importante luthier alemão estabelecido na cidade de Nuremberg e ativo durante a virada do século XVII para XVIII.

[8] Fritz Jöde foi um dos líderes do movimento Juventude Alemã.

[9] São dois artigos, respectivamente publicados nos volumes 3 e 4 do ano de 2006. O primeiro está disponível em: <http://www.windkanal.de/images/stories/PDF/2006-3/Windkanal_2006-3_Geschichte-der-Blockfloete.pdf> e o segundo pode ser acessado com o link: <http://www.windkanal.de/images/stories/PDF/2006-4/Windkanal_2006-4_Peter-Haralan_Teil2.pdf>. Há ainda um suplemento com a transcrição integral da entrevista de Harlan, disponível em: <http://www.windkanal.de/de/bonusmaterial/39>.

[10] Os artigos mereceriam uma tradução para o português, pois certamente contém informações muito relevantes sobre Harlan e a retomada da flauta doce na Alemanha. Alguém se habilita?

[11] As traduções do alemão para o português foram revisadas pela Profa. Dra. Lucia Carpena, docente de flauta doce da UFRGS, a quem agradeço imensamente.

[12] “Da ergingen mir ganz schön plump-vertrauliche Fehler! Die erste Flöte, die ich baute, 1921, da holte ich mir an der Hochschule in Berlin bei Curt Sachs eine Flöte von Denner – das köstlichste Instrument – und kopierte das. Ich habe die Kopie heute noch zu Hause, und sie ich einfach etwas so Wunderbares. Dass ich an der herumdokterte und verbesserte und eins der verrücktesten Dinge gemacht habe, die man heute die Deutsche Griffweise nennt!”

[13] “Dieses natürliche, dass die Quarte gegabelt wird, die hat sich dadurch bedingt, dass wir die Tetrachorde (Ganzton-Ganzton-Halbton, Ganzton-Ganzton-Halbton), den Halbton der Oktave gab es jeher (das wisst ihr ja, das mit dem Daumen). Dass wir den anderen Tetrachord auch gabeln müssen, um ein organisches Instrument zu haben, das hab ich nicht gleich kapiert – man verzeihe es mir.”

[14] “Dass aber dadurch nun die Deutsche Griffweise entstanden ist, weil ich da einen Fauxpas begangen habe aus Mangel an Kenntnissen, das bleibt eine Tragik. Als ich das dann sehr schnell verbesserte und wieder so wie die ersten baute … Aber das mag symptomatisch sein für alles: Man packt etwas an, was größer ist, als wir alle – die Blockflöte hatte ja eine Tradition bis zu dieser Denner-Flöte von der allerhöchsten Reife. Und nun mache ich das Allerhöchste nach und merke auf einmal, ‘Ach nö, nö, das verbessere ich nicht’.”

[15] Leia o interessante texto, disponível (em inglês) em: <https://www.baerenreiter.com/en/publishing-house/baerenreiter-encyclopedia/recorders/>

[16] O flautista Mauro da Silva Pinto produziu um vídeo bacana mostrando os problemas de afinação e dedilhado da flauta germânica. Está disponível em seu canal, chamado “Falando de Flauta”, no link: <https://www.youtube.com/watch?v=lXfL5fH1sGA&t=54s>

[17] Visite o site da marca: <https://br.yamaha.com/pt/products/musical_instruments/winds/recorders/index.html>

[18] Conheça os modelos aqui: <https://www.mollenhauer.com/en>

[19] A grande maioria das tabelas você encontra aqui: <http://www.rrcs.org/Instrument%20Resources.aspx>. Procure por “Fingering Charts”.

[20] Lembre-se que a flauta doce soprano soa uma oitava acima do que se escreve; sua tessitura vai do Dó4 ao Ré6, ao passo que a região confortável para a voz infantil cantada fica entre o Dó3 e o Dó4 (uma oitava abaixo da flauta).

[21] O’KELLY, Eve. The Recorder Today. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. pp.5-10; 28-36.

[22] “English fingering is as much a compromise in its way as German fingering”.

[23] “…though not so unfortunate in its consequences”.

Patrícia Michelini

Doutora em Musicologia pela USP com a pesquisa “Um estudo da solmização e do contraponto por meio de tratados ingleses de música prática nos séculos XVI e XVII” sob a orientação da Profa. Dra. Mônica Isabel Lucas e com apoio financeiro da FAPESP (2017). Mestra em Musicologia pela USP (2012) e Bacharel em Flauta Doce pela UNESP (2006). Tem experiência na área musical com ênfase em flauta doce. Atua principalmente na educação musical e na interpretação do repertório camerístico dos séculos XVII e XVIII.