E
ste ensaio é direcionado especialmente para flautistas doces interessados em música antiga e interpretação historicamente informada, mas a autora espera despertar a curiosidade de todos aqueles que desejam ter maior desenvoltura com a diversidade das flautas doces ao longo dos séculos.
O que as flautas abaixo têm em comum?
Tabela 1: As 11 flautas barrocas originais com furos duplos | ||
CONSTRUTOR | COLEÇÃO | INSTRUMENTO COM FUROS DUPLOS |
Anônimo | Viena, Kunsthistorisches Museum – SAM 155 | 1 contralto (furos 3, 6 & 7) |
Anônimo, possivelmente Perosa (Veneza? c. 1693 – após 1757) |
Viena, Kunsthistorisches Museum – SAM 154 | 1 contralto (furo 7) |
P. J. Bressan (fl. Londres, 1688-1730) |
Chester, Grosvenor Museum | 2 contraltos e 2 flautas de voz (furos 6 & 7) |
N. Castel (fl. Veneza 1720-50?) |
Nice, Musée Palais Lascaris | 1 contralto (furos 6 & 7) |
J. C. Denner (fl. Nuremberg, c.1678-c.1750) |
Bayern, Bogenhaus Collection | 1 contralto (furos 6 & 7) |
?Dupuis (fl. Paris, c. 1700) ou J. Steenbergen (fl. Amsterdam, c. 1700-1752) |
vendida em 1996 no antiquário Bissonet (Place des Vosges, Paris) | 1 contralto (furos 6 & 7) |
T. Stanesby Jr. (fl. Londres, c. 1713-c1754) |
Paris, Musée de la Musique | 1 tenor (furo 7) |
J. Steenbergen (fl. Amsterdam, c. 1700-1752) |
Vermillion, Shrine to Music Museum | 1 contralto (furos 6 & 7) |
Tabela 2: Alguns dedilhados barrocos ou ‘históricos’ em métodos e tratados[28] | ||||||
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Bismantova (Ferrara, 1677)[29] |
– | 0123456 | 012346 | 0123 | 012346 | – |
Hudgebut (Londres, 1679) |
01234567 | 0123456 | 012346 | 01236 | 0234567[30] | 0124 |
Salter (Londres, 1683) |
– | – | 0123467 | 01236 | 012346 | – |
Carr (Londres, 1686) |
01234567 | 0123456 | 012346 | 01236 | 012346
012346 |
0124 |
Loulié (MS, 1680s) |
01234567 | 01234567 | 012346 | 01236 | 012346 | 0123 |
Anonymous (Londres, 1695)[31] |
01234567 | 0123456 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
Freillon-Poncein (Paris 1700) |
01234567 | 01234567 | 012346 | 012367 | 012346 | 0124 |
Anônimo (Londres, 1706) |
01234567 | 0123457 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
Hotteterre (Paris, 1707) |
01234567 | 0123456 | 0123467 | 01236 | 012346 | 0124 |
Schickhardt (Amsterdam, 1720) |
01234567 | 0123457 | 012346 | 01236 | 012346
012346 |
0124 |
Anônimo (Londres, 1722) |
01234567 | 0123457 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
Prelleur (Londres, 1730) |
– | – | 012346 | 01236 | 01234[32] | 0124 |
Majer (Schwäbisch-Hall, 1732) |
01234567 | 0123457 | 012346 | 0123 | 012346 | 0124 |
Stanesby (Londres, 1732)[33] |
01234567 | 01234567[34] | 012346 | 0123 | 012346 | 0124 |
Wright (Londres, c. 1735) |
– | 0123457 | 012346 | 0123 | 012346 | 0124 |
Eisel (Erfurt, 1738) |
– | 0123457 | 012346 | 0123 | 012346 | 0124 |
Tans’ur (Londres, 1746) |
– | – | 012346 | 01236 | 01234 | 0124 |
Anonymous (Londres, 1750) |
– | – | 012346 | 01236 | 01234 | 0124 |
Sadler (Liverpool, 1754) |
– | 0123457 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
Tans’ur (Londres, 1772) |
– | – | 012346 | 01236 | 01234 | 0124 |
Minguet y Yrol (Madrid, 1774) |
01234567 | 0123457 | 012346 | 0123 | 012346 | 0124 |
Anonymous (Londres, c. 1775) |
– | 0123457 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
Anonymous (Londres, 1780) |
– | 0123457 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
ed. Pandoucke/Agasse (Paris, 1788)[35] |
01234567 | 0123456 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
Anonymous (Londres, 1790) |
– | 0123457 | 012346 | 01236 | 012346 | 0124 |
Bibliografia
[1] Estas são apenas algumas das milhares de referências iconográficas que podem ser pesquisadas em Nicholas Lander, ‘Iconography ‘, http://www.recorderhomepage.net/recorder-iconography/. [2] Cristoforo Munari, ‘Panoplia musicale: cornetto, flauto dolce, violino con arco, mandola’ (Tela, 65 x 49 cm), Florença, depósito das Gallerie Fiorentine, inv. n. 7745. ‘Musical instruments’, http://www.baschenis.org/ita/quadro3e4.htm, acessado dia 22 de maio de 2018 (também disponível em http://www.scalarchives.com/web/dettaglio_immagine_adv.asp?idImmagine=0026104&posizione=90&numImmagini=96&prmset=on&SC_PROV=COLL&IdCollection=78988&SC_Lang=eng&Sort=5). [3] ‘Altblockflöjt‘, http://www.mimo-international.com/MIMO/doc/IFD/OAI_SMS_MM_POST_163, acessado dia 22 de maio de 2018. [4] Anônimo século 18, desenho em giz. Nicholas Lander: “[Woodwind Instruments] (ca 1705), chalk drawing, French. Collection of Jill Croft-Murray. Ref. Croft-Murray (1980: 130 & pl. 12, b&w); Haynes (1988: 333, fig. 21, b&w). Depicts an alto recorder, flute, oboe, bassoon and basset recorder, all in baroque style. The basset has a crook and a crutch. All the instruments are shown the same size, but measurements are pencilled in for them as follows: recorder, ‘1 p (pied) 7 p (pouces)’; flute ‘2 p. 2 p‘; Oboe ‘2 p‘; bassoon, ‘4 p 3 p‘; bass recorder 3 p ½‘. Thus the smaller of the two recorders is an alto. On the reverse a number of names are inscribed, namely Plaon or Raon, Cazes, Peutier or Pentier, and Dupuis. The last may refer to the Parisian maker of recorders and other woodwind.” Nicholas Lander, ‘Anonymous: 18th century’, http://www.recorderhomepage.net/recorder-iconography/anonymous-18th-century/, acessado dia 22 de maio de 2018. [5] ‘Flûte à bec alto’, http://collectionsdumusee.philharmoniedeparis.fr/doc/MUSEE/0160874/flute-a-bec-alto, acessado dia 22 de maio de 2018. [6] ‘Flûte à bec alto’, http://collectionsdumusee.philharmoniedeparis.fr/doc/MUSEE/0160378/flute-a-bec-alto, acessado dia 22 e maio de 2018. [7] ‘Recorder in G’, http://www.gardane.info/faq.php?id=11, acessado dia 22 de maio de 2018. [8] Bartolomeo Bismantova, Compendio Musicale. In Cui S’insegna À Principianti Il Vero Modo, a Imparare Con Facilità, Le Regole Del Canto Figurato, E Canto Fermo; Come Anche a Comporre, E Suonare Il Basso Continouo [Sic], Il Flauto, Cornetto, E Violino, (I-REm, Ms. Reggiani E. 41, 1677, rev. 1694). [9] Neste texto farei referência a flautas doces barrocas originais (aquelas feitas no período barroco, geralmente preservadas em museus e por colecionadores), cópias (atuais) de flautas doces barrocas originais, flautas ‘barrocas’ (aquelas feitas hoje com base em originais barrocos, utilizando elementos essenciais das flautas barrocas originais, mas que não podem ser consideradas cópias) e flautas doces barrocas-modernas (aquelas feitas hoje com o chamado dedilhado barroco mas que, no entanto, não são de fato correspondentes às originais). [10] Para entender melhor as diferenças e origens de cada: Patricia Michelini, ‘Flauta Doce Barroca X Germânica - Dois Dedos de Prosa’ http://labflauta.org/conteudo/flauta-doce-barroca-x-germanica/, acessado dia 18 de maio de 2018. Ao que hoje chamamos de dedilhado barroco (aquele que de certa forma faz oposição ao dedilhado chamado germânico), eu me refiro como dedilhado ‘barroco’. Não seria na verdade necessário fazer distinção com o dedilhado barroco de fato, aquele do período barroco, já que isso não existia: a ideia de uniformidade e massificação não existia naquela época; cada flauta pressupunha um flautista que conhecesse as possibilidades e que fosse flexível para adaptar-se ao instrumento e ao temperamento. Ou seja, ‘o’ dedilhado barroco só existe mesmo hoje, mas acho útil lembrar, por isso as aspas. [11] Os furos simples não são o único elemento das flautas barrocas originais frequentemente deixados de lado em flautas atuais: a curvatura típica do canal de ar e da base do bloco são outros elementos que tipicamente não são reproduzidos em nossas flautas barrocas-modernas. [12] ‘Single or double holes?’, https://www.moeck.com/en/service/faq/single-or-double-holes.html, acessado dia 11 de maio de 2018. [13] Correspondência privada. [14] Veja a variedade de diapasões entre a= 385 até 488 Hz em Bruce Haynes, A History of Performing Pitch / the Story of “A” (Lanham, MD: The Scarecrow Press, Inc., 2002). [15] ‘SAM 155’, http://www.recorderhomepage.net/databases/Historic_Instrumentsview.php?showdetail=&Instrument_Number=1621, acessado dia 20 de maio de 2018. [16] Convenção moderna em que 0 se refere ao polegar da mão esquerda e, consequentemente, 7 ao mindinho da mão direita. A mesma numeração é utilizada para denominar os furos da flauta. [17] ‘SAM 154’, http://www.recorderhomepage.net/databases/Historic_Instrumentsview.php?showdetail=&Instrument_Number=1620, acessado dia 20 de maio de 2018. [18] ‘Bressan recorders’, http://grosvenormuseum.westcheshiremuseums.co.uk/collections/top-objects/bressan-recorders/, acessado dia 20 de maio de 2018. [19] Informações detalhadas sobre este instrumento podem ser encontradas na minha tese de doutorado: https://openaccess.leidenuniv.nl/bitstream/handle/1887/33729/IAB.%20Dolce%20Napoli%20-%20Dissertation%20-%20FINAL.pdf?sequence=16. Uma cópia desta flauta pode ser ouvida por exemplo neste link https://open.spotify.com/track/2h7GrTvtA5kTGRA8I3tNTm, nona faixa do CD ‘Dolce Napoli: sonate & concerti per flauto’ (La Cicala/Inês d’Avena, Passacaille 1007, 2015). [20] ‘2a’, http://www.recorderhomepage.net/databases/Historic_Instrumentsview.php?showdetail=&Instrument_Number=1115, acessado dia 20 de maio de 2018. [21] Pode ser a mesma flauta mencionada ao final da lista, de Steenbergen. Se assim for, são 10 flautas no total. [22] ‘Flûte à bec ténor en do’, http://www.mimo-international.com/MIMO/doc/IFD/OAI_CIMU_ALOES_0130218, acessado dia 20 de maio de 2018. [23] ‘6172’, http://www.recorderhomepage.net/databases/Historic_Instrumentsview.php?showdetail=&Instrument_Number=657, acessado dia 20 de maio de 2018. [24] Como no oboé barroco. Etienne Loulié, Méthode Pour Apprendre À Jouer De La Flûte Douce (Paris: Christophe Ballard, 1696 – rev. 1701/1702). [25] Jacques Hotteterre, Principes De La Flûte Traversière, Ou Flûte D'allemagne, De La Flûte À Bec, Ou Flûte Douce, Et Du Haut-Bois, Diviséz Par Traitéz Op. 1 (Paris: C. Ballard, 1707). A flauta na gravura da tabela de dedilhados parece ter um furo 8 duplo (mas não o 7). [26] Detalhe do furo 6 duplo da flauta doce contralto em fá de N. Castel (Veneza, séc. XVIII), Palais Lascaris, Nice. Fotografia de Fumitaka Saito. [27] A esmagadora maioria dos tratados impressos em Londres deixa claro que aquela cidade continha também um número enorme de flautistas amadores que, muitas vezes sem professores, aprendiam a tocar diretamente a partir de métodos e manuais impressos. Faço também a ressalva de que há pouca ou nenhuma diferença entre as muitas versões desses tratados ingleses: com pouquíssimas exceções, são cópias uns dos outros. [28] Para quem quiser se aprofundar nestes métodos e tratados: Susi Möhlmeier and Frédérique Thouvenot, eds., Méthodes & Traités 8 - Flûte À Bec, 4 vols., vol. 1-4, Série Iii - Europe (Courlay: J. M. Fuzeau, 2001-2006). Alguns destes estão disponíveis online pelo site www.imslp.org. [29] Bismantova se refere a uma flauta contralto em sol mas, para propósito de comparação, os dedilhados estão aqui transpostos para uma contralto em fá. Da mesma forma, aqui utilizamos a convenção moderna em que 0 se refere ao polegar da mão esquerda (ao contrário do sistema utilizado por Bismantova em que este mesmo dedo tem o número 1). [30] Suponho que seja um erro: nas tablaturas das peças que se seguem do mesmo livro, esta nota aparece com o dedilhado 012346. [31] Em 1905 Arnold Dolmetsch comprou uma Bressan original (que depois foi perdida e deu origem ao seu trabalho de reproduzi-la). No mesmo mês Dolmetsch comprou também uma cópia deste tratado anônimo publicado por Walsh. Richard Griscom and David Lasocki, The Recorder, (New York and London: Routledge, 2012). p. 335. No entanto, apesar de ter se utilizado do livreto como base para ornamentação e ideias rudimentares de estilo, Dolmetsch parece ter ignorado o dedilhado do tratado ao inventar sua flauta. É facilmente justificável que, preso pelo temperamento igual que o rodeava na época (e que ainda é tão proeminente hoje), Dolmetsch não conseguisse conceber esses dedilhados com afinação marcadamente desigual. [32] Claramente um erro, repetido por Tans’ur e pelo método anônimo de 1750. [33] Stanesby defendia a implementação da flauta tenor em dó como a nova flauta ‘de concerto’. Assim sendo, sua tabela de dedilhados se refere a uma flauta em dó. Para facilitar a comparação, fiz as devidas adaptações à tabela acima. [34] Um erro talvez? [35] A tabela mostra o dedilhado de uma flauta em dó, tendo sido adaptada na tabela acima. [36] Cópias de Castel, Panormo e Perosa. [37] 01234567 seria então a versão mais afinada deste último. [38] A tradução para o português é minha; segue a tradução de Edward R. Reilly em inglês: “Between the whole tones of these seven principal notes lie five other notes which divide the space between the principal notes into two halves, albeit unequal halves at some places, and thus form large or small semitones in relation to the neighbouring upper or lower principal notes. Just because of this inequality they are given two names, are written in two ways, and are produced in two ways in accordance with true intonation.” Johann Joachim Quantz, On Playing the Flute, trans. Edward R. Reilly, 2 ed. (New York: Shirmer Books, 1985). p. 40 [capítulo III, § 3.]. [39] Ibid. p. 197 [capítulo XVI, § 4]. [40] Para saber mais sobre temperamentos usados no período barroco e sua relação com instrumentos de sopros nos séculos 17 e 18: Bruce Haynes, "Beyond Temperament: Non-Keyboard Intonation in the 17th and 18th Centuries," Early Music 19, no. 3 (August) (1991). http://music.indiana.edu/departments/academic/early-music/files/beyond-temperament-bruce-hayes. [41] Relembro que Stanesby Jr. apelava em seu manifesto para que a tenor em dó fosse considerada a verdadeira flauta doce ‘de concerto’ (ao invés da flauta contralto). Assim sendo, sua tabela refere-se a uma flauta em dó, e não em fá como a maioria dos outros tratados. ‘A New System of the Flute À Bec’, http://www.flute-a-bec.com/textestanesbygb.html, acessado dia 21 de junho de 2018. [42] ‘Jacques-Martin Hotteterre - Principes de la flûte traversière, ou flûte d'Allemagne, de la flûte à bec ou flûte douce et du hautbois’, https://fr.wikisource.org/wiki/Page:Jacques-Martin_Hotteterre_-_Principes_de_la_fl%C3%BBte_traversi%C3%A8re,_ou_fl%C3%BBte_d%27Allemagne,_de_la_fl%C3%BBte_%C3%A0_bec_ou_fl%C3%BBte_douce_et_du_hautbois,_divisez_par_traitez.djvu/57, acessado dia 21 de junho de 2018. [43] ‘Flûte à bec alto’, http://collectionsdumusee.philharmoniedeparis.fr/doc/MUSEE/0161582/flute-a-bec-alto, acessado dia 22 de maio de 2018. [44] Um belo exemplo disso são as cantatas do primeiro ano-e-meio de J. S. Bach em Leipzig quando o órgão tocava em a= c. 466 Hz, as cordas e vozes em a = c. 415 Hz e os sopros em a= 415 ou 392 Hz. Três diapasões ao mesmo tempo!
Fazendo a citação deste artigo
d’Avena, Inês. O ÓBVIO PRECISA SER DITO: FLAUTAS COM FUROS SIMPLES, A VARIEDADE DE DEDILHADOS NO PERÍODO BARROCO E A AFINAÇÃO DE SEMITONS DESIGUAIS. lab.flauta, 2018. Disponível em: <http://labflauta.org/conteudo/>.
Considerações legais